sexta-feira, dezembro 17, 2004

"olhos de cigana oblíqua e dissimulada."

"(...)

- Você jura?

- Juro. Deixe ver os olhos, Capitu.

Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, "olhos de cigana oblíqua e dissimulada."
Eu não sabia o que era obliqua, mas dissimulada sabia, e queria ver se podiam chamar assim.

Capitu deixou-se fitar e examinar. Só me perguntava o que era, se nunca os vira, eu nada achei extraordinário; a cor e a doçura eram minhas conhecidas. A demora da contemplação creio que lhe deu outra idéia do meu intento; imaginou que era um pretexto para mirá-los mais de perto, com os meus olhos longos, constantes, enfiados neles, e a isto atribuo que entrassem a ficar crescidos, crescidos e sombrios, com tal expressão que...

Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram.
Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca.

Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me.
Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve.
A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios. Há de dobrar o gozo aos bem-aventurados do céu conhecer a soma dos tormentos que já terão padecido no inferno os seus inimigos; assim também a quantidade das delícias que terão gozado no céu os seus desafetos aumentará as dores aos condenados do inferno.
Este outro suplício escapou ao divino Dane; mas eu não estou aqui para emendar poetas. Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado, agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então com as mãos, e disse-lhe,- para dizer alguma cousa,- que era capaz de os pentear, se quisesse.

- Você?

- Eu mesmo.

- Vai embaraçar-me o cabelo todo, isso sim.

- Se embaraçar, você desembaraça depois.

- Vamos ver.

(...)"

"Dom Casmurro" - Machado de Assis

7 comentários:

Universo Coringa disse...

SIMPLESMENTE MÁGICO...ESPLÊNDIDO....

Mariana Mesa disse...

Nossa essa obra é realmente maravilhosa...sem palavras!

Jaqueline disse...

Essa parte é a melhor, perfeita.

Banda Beija-Flor disse...

Simplesmente colossal,já li quase tudo do mestre do realismo e da literatura brasileira.Lendo e relendo,ainda me arrepio com o poder da língua Portuguesa e com os olhos de cigana oblíqua e dissimulada.

Clayton A. Costa disse...

Um misto de mistério com o "conhecido", de prazer e encanto. Um trecho que nos faz imaginar mais do que os olhos conceguem ler

Unknown disse...

Bagulho loco neh...

Dudu Coêlho disse...

Busquei a ajuda de Vinicius, Drummond, Camões, até Fernando pessoa incomodei
mas nenhum foi capaz de um verso que pudesse descrever teus olhos,
mais os entendo coitados
eu tambem seria incompleto se nao os pudesse vê-los
mas nao sei se estes olhos seriam tão viciosos se acompanhados de outra boca, outro nariz ou outras maçãs de rosto
quais verdades estão ai escondidas?
que menina passou por eles antes da mulher que hoje enfeitam?
quantos mistérios provem destes icognitantes?
seu pecado é tê-los assim
invasivos, ousados e levemente sensuais
de uma falsa inocencia encantadora
insanos, obliquos, discimulados?
Nao sei
vê-los é como abjurar de tudo o que é concreto, que é linear
vê-los é como estar na linha que divide o céu e o inferno.

Autor: Eduardo G. Coêlho