quarta-feira, dezembro 29, 2004


 

Com as mãos geladas e a cabeça prestes a ferver.
Acabei de ligar o lume, pus a velha cafeteira cheia de água a aquecer. As folhas de eucalipto já estão dentro da chávena mas não lhes sinto o cheiro.

Está muito frio, hoje. Choveu o dia todo, ensopei o rosto de risos e bocejos, entupi os olhos com o brilho do sol hoje apagado. Agora ficou muito frio e ainda tenho o cabelo molhado. A lua vê-se daqui – não deve chover amanhã – mas também ela lançou mãos à cabeça e escondeu a testa. Foi lua cheia há três dias, acho.

A água borbulha. Desligo o lume e apago o rádio. São momentos como este que me marcam o tempo. Não sei que horas são, é isso que mais me fascina no escuro – a hesitação do tempo que não muda a intensidade da luz. São sons como o da água a estalar na chávena fria que me fazem estabelecer princípios e fins (que são princípios de outras coisas).
Estou no princípio do meu cambalear. Do vácuo nos ouvidos. Oiço-me respirar e oiço o espumar das folhas verdes na chávena negra.

Hoje não quero passar a noite sozinha.
Começo a enlouquecer com a demora.
O chá não arrefece, e tenho de ser rápida porque acabei de decidir que, pelo menos hoje, não vai ser este o momento que decide que é tempo de ir dormir. Agito as pernas, tenho o nariz a tremer como quando tenho ás vezes as sobrancelhas a palpitar, e dói-me cada vez mais a cabeça. Devo ter febre.
Fecho os olhos, abro-os outra vez e desisto do eucalipto. Bebo a água quente e esqueço-me dele no fundo agora verde da chávena preta.

Peguei nas chaves, abri a porta com muito cuidado para não acordar o céu – não pode ser dia antes de eu adormecer.
Saí, deixei o carro à porta e as chaves penduradas no portão, não fosse eu esquecer-me de qual casa é a minha. Com passos pequeninos, nos bicos dos pés, brinquei à macaca nos paralelos da rua. Tinha as mãos enfiadas nos bolsos e os pés sem sapatos. O chão ainda estava húmido da chuva de hoje, soube-me bem a ânsia de não saber se salto sem escorregar, se escorrego sem cair, se ao cair sei como me levantar…sabia-me bem não saber se iria dormir.

Saltitei até picar o pé numa rosa – desencravei o espinho, pus a flor no cabelo ainda molhado e continuei a andar.
Encontrei, por acaso, um balão numa varanda. Era amarelo, meio vazio, devia estar esquecido desde o último aniversário.

- Onde vais?
- Vou encontrar quem queira a flor que tenho no cabelo.

Desamarrou-se da janela fechada e atou o fio que o prendia ao meu pulso. Estiquei o braço e fui com ele. Vi as luzes das pessoas sob os meus pés descalços, vi as luzes dos deuses sobre a rosa no meu cabelo.
Levou-me para longe, não me disse onde me levava.

- Não tens frio assim, sem sapatos?
- Não! Tu não tens medo de voar assim, sem asas?

- Ficas aqui, alguém há-de tomar conta de ti.

Deixou-me numa porta muito grande. Espreitei lá para dentro e vi muitas carruagens alinhadas, mas não vi ninguém. Andei devagarinho, com os olhos arregalados e as mãos nos bolsos. Tinha os pés descalços e o vácuo nos ouvidos – não vi ninguém.

Ao aproximar-me de uma carruagem, a porta abriu-se. Dei um salto para trás, depois sorri. Senti que alguém me via, achei então que devia brincar ás escondidas.
Entrei na carruagem e corri. Havia muitas cadeiras, todas iguais e todas vazias. Corria, e de dez em dez cadeiras, escondia-me. Contava até vinte em voz baixa e, como ninguém me encontrava, levantava-me e voltava a correr. Cada vez que corria, a carruagem crescia, outras adicionavam-se-lhe, sempre com cadeiras iguais…sempre vazias.

- 14, 15, 16, 17…

Parei de contar. Fiquei sentada e desisti de correr. As pernas latejavam e os pés estavam feridos de cansaço. Olhei em frente, tinha uma janela. As luzes passavam a correr, pareciam uma linha interminável, quase tão infinita como a carruagem vazia.
De joelhos, gatinhei até ao vidro, abri-o e pus a cabeça de fora.
Não havia vento. As coisas passavam a correr mas a carruagem estava parada, não tinha vento a pentear as árvores nem frio no meu nariz.

Doía-me a cabeça.
Lá em cima, as luzes dos deuses fitavam-me. Senti-me envergonhada...não se aparece descalço aos deuses… - mas fitei-os sem pudor.

Uma das luzes brilhava mais e crescia a uma velocidade muito grande. A princípio achei que era um avião gigante, só depois vi que não podia ser – se fosse um avião passava a correr como as luzes das pessoas.
À medida que se aproximava crescia, cada vez mais lentamente.
Fechei a janela num fôlego e fechei os olhos com força. Apertei as mãos e não abri os ouvidos. Uma corrente de ar abraçou-me o rosto e senti que tinha alguém comigo.

Abri o olho esquerdo com muito cuidado e olhei para a janela. Contei até vinte e, no último segundo, abri-a.

Sem tempo para pestanejar, entrou uma luz amarelada pela frecha aberta. Fechei-a muito rapidamente e senti um tremor. Olhei para baixo e vi, caída no chão, uma estrela muito dourada. Tinha o tamanho da palma da minha mão e era feita de papel transparente. Estava muito fria e tinha a luz intermitente. Segurei-a, abracei-a contra o peito e tentei que ela adormecesse. Contei-lhe histórias das pessoas, ela falou-me dos deuses, falou-me do frio e eu falei-lhe do ar condicionado.

Deitei-me no chão, descalça, abraçada a uma estrela que me entrou pela janela da carruagem vazia e infinita. Ouvi-a com muita atenção e comecei a ficar com cócegas nos olhos e com o queixo pesado.

Bocejei, adormeci. Ainda não era de dia.


Uma corrente de ar com aroma de eucalipto, uma claridade estranha em tons laranja, um calor nas mãos, um frio nos pés.

São nove da manhã e vinte segundos. Lá fora o dia é claro, não chove, cá dentro o lusco-fusco acabou.
Tenho o rosto deitado na mesa de pedra, o lápis que tinha preso no cabelo está caído no chão – o bico afiado picou-me o pé. A chávena preta, com fundo esverdeado, tresanda a eucalipto por todo o lado.

Dormi com os braços cruzados.
Entre eles e o peito tenho uma folha de papel em branco.




Papel, s. m. (do Cat. papel). (...) parte da peça teatral que compete a cada actor desempenhar.

Transparente, adj. 2 gén. (do Lat. trans+parente). (...)Fig. Que se percebe facilmente; evidente; claro.

Estrela, s. f. (do Lat. stella). 1. Astro que tem luz própria, parecendo sempre fixo no firmamento. 2. Distinto. 3. Sorte. 4. Fado. 5. Guia.


29.12.04
*Mó

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