quinta-feira, dezembro 23, 2004


Posted by Hello

Tiras o carro da garagem todas as manhãs.
Só depois de alguns minutos é que te dás conta que os vidros estão completamente envoltos em orvalho e poeira.

Dizes que os carros não se lavam no Inverno, que a sujidade protege do frio, as poeiras abafam as epidemias. Sabes bem que não as curam, mas insistes em sair sempre com o embaciado encravado entre o pó.

Todas as manhãs bocejas ao arrancar, tremelicas as pestanas ao primeiro semáforo que apanhas – 139 segundos exactos separam-no da tua porta. Fazes a primeira rotunda e sais na terceira rua…derrapa-te sempre o carro ao fazer a curva, e pensas sempre que para a próxima vais ter mais cuidado.
Desces pela mesma rua, a farmácia tem sempre as luzes acesas e só ao chegares à segunda rotunda (passaram-se entretanto 164 segundos desde a primeira) é que te dás conta que não tinhas o rádio ligado.
Como todos os dias, acabas por ligá-lo, mas só uma dezena de quilómetros mais tarde é que reparas na música que está a tocar.

Todos os dias inventas histórias.
Fazes de conta que tens imensas coisas para tratar, que tens muita gente à tua espera, que o carro atrás de ti te persegue e tens de fugir, que cinco carros mais à frente chamam por ti e tens de te apressar. Aceleras quando podes, quando não podes buzinas só para que todos saibam que tens imensas coisas para fazer.
Paras no enésimo semáforo, dobras a curva número 8 e mudas de estação. Carregas furiosamente em todos os botões, repetes o procedimento até desligares o rádio:

-Não dá nada de jeito…

Reparas todos os dias que tens pó no tablier, que ainda não sacudiste as migalhas do estofo, que afinal a a mancha das calças não saiu. Reparas que deixaste o relógio em casa, que tens ainda remelas nos olhos, ris-te para o espelho retrovisor só para confirmar se lavaste bem os dentes. Reparas todos os dias que estás pálida, e depois desse sorriso higienista, decides dar bofetadas no teu próprio rosto para ver se ficas com um ar mais saudável…

Todos os dias fazes de conta que tens sempre milhões de coisas para tratar, que nem tens tempo para respirar.
Passas pela ponte, pelo túnel, pela paragem do autocarro. Décimo sexto semáforo ao fundo…e está verde…amarelo… Aceleras para não teres de parar, para poderes passar antes do vermelho…afinal, tens tantas coisas para fazer…

Aceleras muito, para num instante apenas torceres os braços agarrados ao volante, travares a fundo e galgares o passeio.

Ela devia ter uns 6, 7 anos talvez.
Não sabes como não a viste a descer o passeio com tanta delicadeza. Tinha uma flor nos cabelos ondulados, uma violeta presa a um gancho negro…da cor do carvão. Tinha um vestido com saia de roda, vermelho, e uns sapatinhos de verniz muito brilhantes.
Não te lembras se estava sozinha, não fazes ideia se nessa hora tinhas alguém atrás de ti a perseguir-te ou se tinhas milhões de coisas a tratar. Mas lembras-te da forma como ela te sorriu… como levantou os olhos do chão, os arregalou, e com a doçura mais verdadeira que já tinhas visto, sorriu-te.
Tinha a mão esquerda levantada, o braço esticado e a palma virada para ti, os dedos apontados para o céu…tu foste capaz de lhe ler os lábios:

- Tem calma…

Congelaste naquela imagem.
Incandiaste os olhos com a luz de um sorriso e só tiveste tempo de virar o volante, travar a fundo, galgar o passeio.



O motor foi abaixo.
O rádio desligado.
Chovia muito, sabias que derraparias em todas as rotundas e que faltavam 66 segundos para o próximo semáforo.

-É maluca! Ainda mata alguém!

Saíste do carro num impulso, chovia menos, cada vez menos.
Olhaste para trás, não viste ninguém no passeio.
Os carros buzinavam muito, as pessoas berravam muito dentro deles, abanavam a cabeça em sinal de condenação… e não viste ninguém no passeio. Nem vestígios de um vestido vermelho, de saia rodada.

Verde, amarelo, vermelho, verde, amarelo, vermelho… Atordoava-te a velocidade com que as cores se atropelavam, não entendias mais porque é que as pessoas corriam tanto!
Numa náusea que não pensaste em explicar, deixaste de saber o que fazias ali, que carro era aquele – tu nunca quiseste aprender a conduzir!
Não sabias porque é que as pessoas fugiam…teriam quem as perseguisse? Talvez tivessem milhões de coisas para fazer… sabe-se lá…

Não sabias quanto tempo tinha passado desde a última vez que reparaste como ficam lindas as ruas quando o sol brilha no chão ainda molhado…
E não querias saber.

-Está linda a manhã, hoje…



23.12.04
*Mó

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