quarta-feira, fevereiro 16, 2005

trazias um cúmplice com sabor de uva e mel.

Tento ver onde é que se esconde o meu reflexo na pele côncava do copo.

Ontem, naquele abraço das pedras atrás de nós (onde nos escondemos, sem reflexo), não pensamos em correr atrás de nada. Tínhamos tudo na palma das mãos, em cima da pele côncava dos olhos.
Vi-me quando chegaste perto e tão perto te apertei para que não mais perdesse o meu lugar no sítio onde escondes as lágrimas e os silêncios dos sorrisos.

Éramos dois bonecos de pano... com veludo nas mãos, algodão nos cabelos e cabos de aço amarrados à nossa volta. Colados, atados com nós que fizemos tão bem feitos que cada gesto dado os reforça, atiçados e embrulhados de uma forma tão simples que é desnecessário qualquer estratagema de os desatar - nenhum funcionaria.

Tínhamos os mundos todos e as galáxias todas. Tínhamos recantos para os segredos, enrolados um no outro, sem saber onde existia o resto que não éramos nós.

Trouxeste um cúmplice, vermelho negro, com trago de mel e uva - com trago de uva e desejo de mel. Como os acordes dos teus sacrilégios e dos meus previlégios de beber dos teus segredos.

Existem noites assim...perfeitas.
Em que se cortam as mãos e se arranha a pele com a barba áspera (reparaste como cantam os pedaços da minha pele por onde tu passas?), em que se raspam os joelhos no granito esculpido só para nós.

Existem noites em que se fazem paredes e tectos de vapor e o frio não toca em nós, em que temos tudo mais especial que o sonho...em que o sonho é só o resumo quase inócuo da magia toda que nos viram encontrar.

Não vieram as carruagens, nem os cavalos brancos, e nem eu tinha um vestido bordado a ouro. Não havia orquestra de gente, nem um bailado onde as donzelas aprendem a voar. Não soubemos das bruxas nem das madrastas malvadas... confesso que não vi sequer a fada madrinha.

Mas vi-te a ti. E vi-te tão perto que bloqueei no relógio que fica eternamente no último segundo da décima primeira badalada.
O feitiço assim não quebra, e eu não tropeço na escada...esqueço o sapatinho.

Hoje sei, ao procurar o meu reflexo escondido no copo, que não se inventam histórias nem se pedem histórias já inventadas quando se vive o que nós vivemos - com corpo, com alma, com granitos esculpidos e ventos desviados.

Quando estamos perdidos, encontrados depois do espaço que não é nosso.

Quando trazes um cúmplice, que sabe a uva e a mel.

Quando, ao invés de tropeçar na escada, se galgam os medos e se bebem segredos num copo de cristal.


15.02.05
*Mó

3 comentários:

Anónimo disse...

If you can dream-and not make dreams your master;
If you can think-and not make thoughts your aim,
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same:.
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build'em up with worn-out tools
Is not all that we see or seem
But a dream within a dream?

Patrícia Mota disse...

E não tens medo de não te esconderes nem de ti? Não tens medo de tirar o vestido e dares-te ao vento? Não tens medo de te virares do avesso? Sei lá...
Não tens medo do escuro dessas noites, quando a lua não te fizer de vela? Do frio dos corpos depois da morte? Não tens medo de partir o copo com travo de mel e uva? Sei lá...
Não tens medo de ti? Dele? Do mundo?

Que coragem de amar assim...

Eu reviro os olhos, pinto um sorriso, um adeus e um ate nunca... E os copos...(?) Esses ficam sempre vazios e, deixo que o vento me leve a alma para outros copos...

salamandra disse...

tenho medo, gaivota. mas so tenho medo agora, de não voltar a ter noites sem medo, como essa, como tantas.