segunda-feira, agosto 08, 2005

Dança, ciganinha...

Ela andava sobre os estilhaços como quem penteia as cores do vento.

Ele não a descobriu nunca.
Achava sempre que as saudações de luz eram peças de poetas.

Achava-se poeta, ele.
Inspirava a mão no que dizia sentir.

Ela escrevia na areia. O riacho doce limpava-lhe os olhos quando ela sorria.
Espelhava o céu nos gestos.
Expirava alma no que cantava.

E não cantava palavras.


Ele fugia das fagulhas dos sentidos - não chorava demais, não comia demais, não dormia demais.

Ela dançava ao acordar.
E dançava enquanto dormia.
Tinha sempre os pés descalços e as mãos suadas dum perfume mascavado da cor do açúcar do sol.

A pele escamada era salgada de poeiras. Os cabelos negros torciam-se enrolados nos braços enquanto ela brincava ás escondidas com o mundo todo.


Ele dizia que os beijos se glorificavam - ela roubava com os lábios os cânticos das gaivotas.

Olhava-o.
Chamava-o
e ele escrevia sobre os olhos pérola-negros. Escrevia sobra as mãos queimadas, sobre os cabelos ondulados.

Sorria-lhe.
Escondia-se e voltava e ele tremia os dedos e continuava a escrever.

Fez-lhe um castelo de sonetos, uma ode inventada com riscos e desenhos.

Ela continuava a brincar com as curvas do tempo, as voltas dos gestos torcidos num corpo de sereia.

Um dia, enquanto ela cantava as palavras sem letras que ele não sabia decifrar, caiu das nuvens o dilúvio eterno.
As folhas pintadas de chuva derreteram e as palavras escorregaram pelo riacho doce.


Ele chorou muito.Chorou demais.
Ela puxou-o, sem o chamar. Enrolou os cabelos nas mãos trémulas dele, susteve-lhe o rosto e limpou-lhe as lágrimas com os lábios molhados.
Não lhe sorriu, não lhe cantou.

Ele fechou os olhos e viu tudo o que ela lhe gritava com o corpo.
Deixou que a voz lhe saísse sem pensar no que as palavras queriam dizer.

-Dança, ciganinha, dança...




Encontraram-no a sucumbir no meio da tempestade. Não havia ninguém por perto, ele tinha desparecido sem deixar sinais.
Disse qualquer coisa que as palavras não decifram, sorriu e não mais acordou.
Tinha os pés descalços. As mãos unidas por um fio de cabelo negro.

*Mó
08.08.05


De que tela surgiste, ave, sereia e flama,
toda feita de luz e carne? Os teus olhares,
nas olheiras de fogo, acendem a fagulha
do amor e da paixão, da febre e da saudade.


A cigana, Alexandrina Scurtu

6 comentários:

Pescador disse...

Olá minha querida Gaivota que outrora foi sereia... foi com alegre supresa que recebi a tua visita e ... com alguma tristeza por ficar a saber que sentias saudades das minhas visitas ao teu mundo... mas sabes minha querida até hoje ... tal era impossível, pois eu não sabia por onde andavas e tenho andado distraido de outros links que vou encontrando pelos Portos... mas também não tenho ideia de ver uma pista de ti nos portos por onde passo... mas de qualquer forma experimenta ver este link que irás perceber melhor...

http://abarcadopescador.blogspot.com/2005/06/aviso.html

agora, mal acabe de escrever estas palavras... vou por logo a rota para a tua falésia junto dos meus Portos de Abrigo ;-) !!
Já dei uma vista de olhos pelo teu blog .... e está lindo ... não tenho a certeza ...mas está diferente do que estava , não está ??
És tu a cigana deste texto que baila sem parar... ???
Podes ter a certeza de que agora as minhas visitas serão muitas ... tantas como os teus post !!!
Bjs doces minha querida Gaivota Sereia
Pescador

Anónimo disse...

o post

Pescador disse...

Vou para fora uns dias... " e como tu e eu tinhas desaparecido do mapa " ...bem, aqui fica um bj doce e votos de um óptimo fim de semana
Pescador

Perséfone disse...

nao vou dizer que entendo sequer metade do que escondes nas tuas palavras, mas... digo-te que pintas cenarios lindissimos e que escreves e transmites sensações etéreas :)

beijo*

salamandra disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
salamandra disse...

as xs tenho a sensaçao claustrofóbica que não sei como evidenciar as coisas que são realmente importantes...que torno barroca a condição e não consigo dar luz á perola das minhas palavras...
como este texto...uma ciganinha que não sabe o que são palavras, mas sabe o que é amar. e um poeta, que acredita que o amor das coisas está nas palavras que as escrevem...até o dia em que as palavras caem no meio do dilúvio e ele vê a ciganinha dançar, sem pensar mais nisso.
mesmo que essa seja a ultima coisa que vê....mesmo que seja só uma imagem que inventou com as palavras que escreveu....amou...e isso é o que importa:)
eu existo nesse dilema...entre o que sinto e o que escrevo...o que sonho e o que torno real...

nunca sei o que posso trazer do céu onde voo sem limites...nunca sei onde estou a pensar demais e voar de menos...ou vice-versa.

nao sei se dançe, se escreva...
***