Tenho 30 minutos e meio para encher esta folha.
Quero fazer dos meus dedos peregrinos de um pleonasmo de vidas banais e habituar-me à ideia de ficar descalça sem ver o sol a nascer.
As vontades também são contagens decrescentes no relógio dos encantos, como são sempre segundos finais todos aqueles que antecedem uma vida eterna. Tudo em contra-relógio, menos eu, que vou tendo só 28 minutos para dizer o que penso sem sentir o que digo.
Magoa-me. Magoa-me muito não ter pêndulos na alma, como quem tem relógios nos pulsos.
Descalça, o chão é mais quente e as mãos mais pesadas, a gravidade é membro de paz e viaja em mim como se fosse ela mesma uma peregrina do que devo ser. Do que não sou.
Perco-me pelos caminhos e páro em portagens com retornos em contra-mão - regresso quase sempre e trago às costas mais vértebras que, ao fazerem com que eu cresça também destroem o equilíbrio vertical da minha postura inicial. Vou tombando, mas debruçada para trás, até ficar em ponte, virada para cima e de olhos abertos, para depois, no fim dos voos todos, descansar deitada e de olhos fechados.
Fico realmente chateada quando me acontecem desiquilíbrios assim. Tenho pouco menos de 25 minutos para preencher as linhas que me faltam e já existiu o meu "grand final" no parágrafo anterior. Não meço o tamanho dos espaços antes de trepar aos seus limites e depois canso-me...páro, recomeço e acabo por não chegar a lado nenhum - caminhar é o lugar final.
Mais dois ou três vocábulos, mais uma ou duas linhas e volta tudo ao normal - as horas mudam na Primavera, e no Outono também, porque as coisas grandes das espécies totais sabem que há sempre um ou outro ajuste por fazer.
Hoje não me apetece cair. Descalça ainda, e com uma ou outra vértebra a mais, tombo para o céu como seria previsto mas não rastejo de tornozelos cambaleados - amanhã farei as coisas banais de andar por aí com noção do tamanho dos lugares que calço.
Atraso o relógio e desligo o alarme.
Tenho 20 minutos mais a vida inteira para as frases todas das folhas todas do mundo todo que é meu.*Mó
23.05.06