domingo, dezembro 11, 2005

é de amantes que se fala. e é dos que fazem silêncio que se faz mito.

"Durante todo o primeiro acto, Orfeu queixou-se com facilidade, algumas mulheres de túnica comentaram com graça o seu infortúnio e cantou-se o amor em pequenas árias.
A sala reagiu com um entusiasmo discreto.
Acaso se não notou que Orfeu introduzia na sua ária do segundo acto tremuras que lá não figuravam e pedia, com um ligeiro excesso de patético, ao senhor dos Infernos que se deixasse comover pelos seus prantos.
Certos gestos ritmados que lhe escaparam apareceram aos mais conhecedores como um efeito de estilização que aumentava ainda mais o valor da interpretação do cantor.

Foi necessário o dueto de Orfeu e Eurídice, no terceiro acto (era o momento em que Eurídice fugia ao seu amante), para que uma certa surpresa corresse pela sala. E, como se o cantor tivesse apenas esperado este movimento do público ou, mais certamente ainda, como se o rumor vindo da plateia tivesse confirmado o que ele sentia, foi esse o momento que ele escolheu para avançar para a boca da cena de uma maneira grotesca, braços e pernas afastados no seu trajo à antiga, para vir abater-se no meio dos redis do cenário, que nunca tinham deixado de ser anacrónicos, mas que, aos olhos dos espectadores, o foram pela primeira vez e de uma maneira terrível, pois ao mesmo tempo a orquestra calou-se, as pessoas da plateia levantaram-se e começaram lentamente a evacuar a sala, primeiro em silêncio, como se sai de uma igreja depois de acabada a missa ou de uma câmara mortuária depois de uma visita, as mulheres segurando as saias e saindo de cabeça baixa, os homens guiando as suas companheiras pelo cotovelo.
Pouco a pouco, porém, o movimento precipitou-se, o murmúrio tornou-se exclamação e a multidão afluiu às saídas comprimindo-se, para acabar por se empurrar e gritar.(...)"

Albert Camus - A Peste

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