segunda-feira, dezembro 19, 2005

Venho dentro do carro. Ao volante.
Sozinha. Num sítio qualquer do caminho de sempre.
Está escuro e são horas serenas de fim de tarde tardia.
Já não chove. Ainda faz frio.

Torço o retrovisor e fixo-me de frente – pálida, cerrada, com o negro dos olhos escondido pelo olhar.

Concentro-me em mim.
Revejo-me.

Brahms ouve-se por trás dos meus ritmos, com as partituras das minhas partes mais escuras.
Fecho a luz dos fonemas – concentro-me nas palavras que não digo, e canto. Desligo a música, atraso o ponteiro do relógio, abrando a estrada e volto atrás – sem olhar para trás.

Reajusto o retrovisor e foco os lábios – encerram uma pérola que não encontro, cravados nos segredos que não conto a ninguém, que nem eu quero descobrir.
Escorrego os pés, desvio o caminho. Ao volante, descentralizada do rumo, desencontrada.

Com a mão direita foco-me outra vez.
Os olhos no espelho outra vez e por trás de mim só a luz de dois pontos que me perseguem. São mais benevolentes, estes pontos que me fixam do que os que sigo quando olho em mim.

Inspiro com toda a salubridade rítmica que Brahms deixou, esvazio o corpo e encho os pulmões.
Grito até que se rasguem em estilhaços os vidros que me vejam aqui, e cuspo saudades de sal, de me ver em ti noutros vidros que tais.

Embebedo-me numa calma de morte, amantizo-me dum último desvio final e alcoolizada em sombras, desligo.



Chove agora.
Chove muito.
Por dentro, por fora.

Lembro-me de dois pontos luminosos atrás de mim, que eu quis que me apanhassem e se apagassem depois. E lembro-me dum espelho.
E do que ficou nele escrito sobre mim.

Eles que te contem que me viram.
E que cantei o último silêncio.

Que chorei por ti.



05.12.05
*Mó

2 comentários:

DT disse...

Os meus parabéns, este texto está SUBLIME! É sempre bom encontrar blogs com esta qualidade. Continua que eu voltarei:)

Bjs

Pierrot disse...

Extraordinário
Este texto é simplesmente arrebatador. Curioso como tenho textos com palavras tão idênticas, ainda que arquitectadas de outra forma.
Diria que as palavras são transversais e omnipresentes aos sentimentos, independentemente das pessoas, local, origem social, etc... Á medida que fui lendo o texto fui imaginando o quadro, as suas cores, e o próprio frio. É brutal. Por um acaso calhei de ler ouvindo com "Once upon a time in America" de Ennio Morricone e está perfeito. "Chove agora, chove muito, por dentro e por fora"...Como a chuva e o cinzento podem ser coisas lindas, dependendo se chove por dentro, ou fora de nós. Não poderia estar mais de acordo.
À medida que vou lendo vou gostando mais do teu blog, e vou recomendá-lo. Continua...e não desligues a música!

Pierrot (heartpierrot.blogspot.com)