Pego nas penas e junto-as uma por uma, pela ordem certa.
Faço um conjunto equilibrado, de peças conexas pelo desenho que achei mais delicado.
Calculo qual a pena mais pequena, qual a mais eterna, qual a que um dia, por esquecimento, deixei no bolso do casaco. Defino a hierarquia de todas, de cada uma em solidão e do espaço entre elas que tenho de deixar para que todas respirem melhor.
Algumas são coloridas, outras foram perdendo o contraste, foram ganhando camaleónicas adaptações à condição de passado. Todas já foram uma só, e quando todas as penas são uma só deixam de ser penas e são uma pluma de eternizações.
Foi bonito vê-las no fim, organizadas, da mais pequena à maior, da mais escura à mais iluminada, por ordem de importância, por desordem de pertinência – todas as penas são pertinentes, e uma de cada vez é-o mais ainda.
Colei-as com cuspe, daquele mesmo cuspe salgado que as vezes, quando não sabia onde tinha escondido uma pena ou outra, eu tinha nos olhos.
Esperei que secassem, que mirrassem devagarinho para eu pintar com cores os bocadinhos que iam ficando em branco entre uma e outra.
Foi demorado o processo, tive de encontrar uma por uma, tirar o pó, abraçar todas duma vez, não deixar nenhuma escapar no vento e contá-las com cuidado. As que estavam partidas foram as mais difíceis, porque penas partidas não têm arranjo, são como os caramelos que depois de derretidos não voltam mais. Essas, tive de tentar mais do que quaisquer outras encontrar o lugar onde se partiram, tentar entender quem estava com elas e quantas lágrimas as curaram.
Tive de chorar essas lágrimas todas e esperar que o sol as secasse do sal.
Depois também haviam algumas que eram teimosas. Diziam que não eram penas minhas, que eram virtudes de enganos que fui fazendo por aí. Diziam que não seriam condenadas a um quadro completo quando não viam em nada motivo de condenação.
Penas revolucionárias, chamei-lhes eu.
Prendi-as nas minhas pestanas e fi-las chocar nas pálpebras até elas entenderem o que eu queria que elas vissem no que eu via longe.
Quando achei que estava um conjunto equilibrado, pus um parafuso bem resistente pregado em algodão doce.
Pendurei o quadro e soprei com força.
Era o quadro mais bonito do mundo todo naquele momento. Mas também era o mais agarrado ao chão.
Soprei com mais força ainda.
Mas penas passadas não voam organizadas, pintadas nos buraquinhos em branco, presas à nuvem mais doce.
Penas passadas não se colam com lágrimas, não se rendem aos ventos.
Pousam no chão, ganham pó. Algumas teimam sempre, mesmo esmagadas entre as pálpebras, que não são penas de paz. Lutam contra a volatilidade e dizem-se penas pesadas de coisas que não são condenações.
Mas não voam.
Nem se enterram.
Antes de dormir, passo sempre um último segundo a secar uma lágrima. É sempre só mais uma, e é sempre demorado o processo do instante em que ela vai embora.
Antes de dormir olho o chão e olho o céu. Depois passo sempre um último segundo a secar uma lágrima. E é sempre a última.
Antes de dormir…seco as penas e voo. Seco a última lágrima no último segundo: enterro as penas pesadas, pinto os bocadinhos em branco debaixo dos pés e deixo tudo ganhar pó.
Antes de dormir sopro a nuvem, com o sal seco nos olhos e voo. (Sem penas a mais para me prenderem ao chão).
09.11.05
*Mó
1 comentário:
"haviam algumas"
desculpa se pareço um prontuário mas esta não posso deixar passar
é que na minha terra este verbo só se usa no singular
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vinte beijinhos estrelados
do Jonas de sempre
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