sábado, março 26, 2005

esperas...




9 meses para nascer... Começa tudo assim, é igual para todos. Vou acreditar nisso e não me vou por aqui com questões de índole científica e/ou ético-filosóficas. O fenótipo começa aí, durante 9 meses de delineação do genótipo, e depois sai a conta direitinha - tu. Esperam que não te ponhas com manias, que chores assim que estiveres cá fora, afinal, já estiveste tempo de mais calado, dizem eles.
Fazes as coisas bem feitinhas mas, não contentes, perguntam se vais demorar muito a abrir os olhos. Caramba! Acabaste de gritar e estás cansadíssima! Mas não querem saber...
Depois vem o primeiro xixi que nunca mais chega, o primeiro soluço, o primeiro arroto, o espirro, o bocejo, o fechar da mão, o mexer do pé, o tossir, soluçar, dar pontapé, puxar os cabelos...esperam cada reacção, ou por outra, cada acção, porque tu estás realmente nas tintas para saber se te pedem para sorrir, tens uma vida inteira para o fazer.
Passa, tudo passa.

Remelas nos olhos todas as manhãs, aquelas cócegas no nariz, os espirros na primavera, os arrepios no inverno...um...outro, passam todos. Esperas acordar, esperas que o despertador toque segunda vez, porque só depois disso é que te levantas, fazes sempre as coisas por faseamento...duas esperas pequenas rendem mais o tempo, senão deixavas que ele tocasse sempre na hora em que toca pela segunda vez...todos os dias.
Esperas que a água saia quente do chuveiro, e despes-te. Esperas que acabe a água quente, e sais. Vestes-te. Esperas que as torradas fiquem prontas, que o leite fique quente. Esperas acabar de comer para lavar os dentes, já com água fria. Esperas acabar de te vestir, pões as lentes de contacto, e só depois é que te olhas ao espelho.
Esperas não ter uma má surpresa quando o fizeres.

Esperas
que pare de chover, não podes molhar as botas novas, esperaste pelo natal para as comprares. Sais com toda a pressa, como se estivesses pronta há imenso tempo, e vais até á paragem. Esperas o autocarro. Chega. Olhas e não é o que te leva onde queres ir. Esperas o próximo, e o outro. Volta a chover, molhas as botas.

Chega. Esperas ter um lugar para te sentares, mas sabes que sempre que vais atrasada acabas por ficar entalada na porta. O motorista abre a porta, vais á carteira e não tens senha. Deixaste-a em cima da mesa ontem, no meio das tuas coisas, enquanto esperavas que o chá arrefecesse, antes de ires dormir.
Tiras o dinheiro, esperas ter que chegue, senão sabes que tens de sair e fazer o caminho todo para trás, esperar mais meia hora pelo proximo autocarro.
Não arranjas lugar, já era de prever.
Primeiro sinal vermelho, segundo. Esperas.
Um acidente ao fundo da rua, e mais um compasso em paragem.

Pensas em tudo o que vais fazer hoje. As vezes que vais dizer "bom dia", os sorrisos que vais receber em troca, as desilusões que já não te surpreendem. Pensas em tudo o que esperas poder esperar. Fazes contas de cabeça, quantas vezes vais esperar qualquer coisa até o dia acabar.

E só esperas que ele não acabe.
Olhas em volta, não tinhas visto ninguém desde que entraste.

Reparas em todos os lugares onde te lembras um dia ter esperado por alguém,num autocarro semelhante, ou mesmo naquele:

Uma grávida, uns 8 meses de gestação, provavelmente. Ela também te olha, e diz-te muito mais do que o que podias esperar.

Um velhinho, com uns 90 anos, olha o chão enquanto chora. Tem uma gravata preta, uma bengala na mão direita, uma flor seca na esquerda.

Uma criança, no colo da mãe. Espirra muito, e a mãe faz-lhe cócegas para a ver soluçar com gargalhadas.

E ele.
Nunca o tinhas visto, nem sabes bem se o que vês existe, porque sempre esperaste que ele aparecesse.
Esqueçes tudo o que ias fazer hoje. Querias que o tempo parasse ali, que a criança não parasse de soluçar, que o olhar daquela grávida congelasse, que a lágrima do velhinho não caísse sem antes chegares para a poderes guardar no teu bolso.
Que ele também estivesse ali, desde sempre á tua espera.

Esperas que tudo fique assim, perfeito. Numa manhã atrasada, com as botas molhadas, de pé, no autocarro. Um acidente lá fora, muita chuva, muita mesmo.


Acordaste. Com remelas nos olhos, cócegas no nariz.
"Quando tocar segunda vez, eu levanto-me..."



26.03.05
*Mó

1 comentário:

Patrícia Mota disse...

Passei a minha vida a espera, se bem que como diria a minha mae "estas sempre um passo a frente do que realmente queres, um minuto adiantada, um pouco a frente da linha de partida"

Nasci duas semanas antes do que devia, comecei a correr ate antes de saber andar, entrei na escola um ano mais cedo. vou para a paragem do autocarro sempre um pouco mais cedo e, na maioria das vezes vou caminhando ate a paragem seguinte, porque há sempre um outro ponto para se apanhar aquilo que se querer, a oportunidade nunca é unica. Chego sempre a faculdade a tempo de tomar um cafe, a tempo de trocar uns beijos e uns olhares, sou a ultima a entrar na sala e sempre a pimeira a sair. Tenho sempre pressa para fazer alguma coisa, gosto de chegar adiantada, de correr o mundo para chegar a paragem de sempre e... esperar.

E como sempre adiantada no mundo achei o amor cedo de mais, num autocarro que não era o meu. A vida obrigou-me a esperar pelo proximo autocarro, o certo, o que nunca me voltaria a traze-lo...

Mas como eu digo (e na quer dizer que me acredite), a oportundade nunca é unica. Eu vou estar sempre lá, um pouco mais cedo, com um pouco mais de pressa, para esperar mais um pouco.