sexta-feira, janeiro 07, 2005

primeiro de janeiro (segundo)

(...)
Ficaram quietos, um ao lado do outro, sem dizerem nada. Ouvia-se o mascar salivado dos caramelos e as respirações dos narizes entupidos.

-Tens uma mochila gira...

Rodou a cabeça. Estava frio, ali, sem a luz do sol. 10 metros acima o céu era azul, ali os dois focos também o eram.
Sorriu, 15 segundos depois desceu os olhos já com as retinas ressequidas.

-Eu sou o Miguel. Vives aqui perto?
-Mais ou menos.


Levantou-se, fixou-o novamente. Dois degraus abaixo ficava à altura dele, sentado. Tombou o corpo indefinido e segurou-lhe a nuca com as duas mãos. Chegou perto sem nunca abrir os olhos, ouvia o esganiçado do respirar. Ele tinha os lábios quentes, ela tinha o nariz frio, luvas nas mãos.
Encostaram-se, tocaram-se. Ele arregalou bem os faróis e deixou os lábios soltos. Os pés tremeram-lhe, agarrou-se ao degrau onde estava sentado e eesticou muito o pescoço.
Ficou um sabor a rebuçado de café, uma doçura colada nos dentes.

-Eu não gosto de café, Miguel. Fica com ele, não quero mais.

Virou costas, desceu a correr, de dois em dois degraus. Caiu-lhe o chapuz, tinha uma trança no cabelo.


01 de Janeiro de 2005

Segurou o gato branco. Procurou algum ferimento, alguma mazela. No pescoço, tinha uma coleira.
Segurou-lhe a nuca e desamarrou a fivela. Trazia um papel amarrado, abriu-o. Levantou-o do chão com a mão esquerda e foi andando enquanto lia o bilhete.

-Desculpe, encontrei este saco no chão, é seu?
-É sim, obrigada...


Escapou-lhe o gato das mãos, amassou o papel entre os dedos.

-Convido-a para um café, a esta hora da manhã seria perfeito...
-Não tomo café, e de qualquer forma tenho um combóio a apanhar.


Chegou à estação. Meteu a mão no bolso, depois de descalçar a luva, e sentiu o pedaço de papel amarrotado. Tirou os óculos de sol, abriu a saca rosa e colocou-os lá, ao mesmo tempo que lia as entrelinhas dobradas:

"Se o encontrar, fique com ele, não o devolva...a não ser que não goste dele."

Sorriu. Entrou na carruagem e ao terceiro degrau voltou a sair.
Comprou um rebuçado de café e talvez tenha perdido a viagem...talvez tenha acabado de chegar.


01.01.05
*Mó

2 comentários:

Patrícia Mota disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Patrícia Mota disse...

Muito bom.

"Escapou-lhe o gato das mãos"
São das tais dadivas que não sabemos guardar.
Havemos de aprender a gostar (de café/ de sacas e mochilas cor de rosa), ou havemos de aprender a detestar (palhaços)...