Venho dentro do carro. Ao volante.
Sozinha. Num sítio qualquer do caminho de sempre.
Está escuro e são horas serenas de fim de tarde tardia.
Já não chove. Ainda faz frio.
Torço o retrovisor e fixo-me de frente – pálida, cerrada, com o negro dos olhos escondido pelo olhar.
Concentro-me em mim.
Revejo-me. Brahms ouve-se por trás dos meus ritmos, com as partituras das minhas partes mais escuras.
Fecho a luz dos fonemas – concentro-me nas palavras que não digo, e canto. Desligo a música, atraso o ponteiro do relógio, abrando a estrada e volto atrás – sem olhar para trás.
Reajusto o retrovisor e foco os lábios – encerram uma pérola que não encontro, cravados nos segredos que não conto a ninguém, que
nem eu quero descobrir.Escorrego os pés, desvio o caminho. Ao volante, descentralizada do rumo,
desencontrada.Com a mão direita foco-me outra vez.
Os olhos no espelho outra vez e por trás de mim só a luz de dois pontos que me perseguem. São mais benevolentes, estes pontos que me fixam do que os que sigo quando olho em mim.
Inspiro com toda a salubridade rítmica que Brahms deixou, esvazio o corpo e encho os pulmões.
Grito até que se rasguem em estilhaços os vidros que me vejam aqui, e cuspo saudades de sal, de me ver em ti noutros vidros que tais.
Embebedo-me numa calma de morte, amantizo-me dum último desvio final e
alcoolizada em sombras, desligo.
Chove agora.
Chove muito.
Por dentro, por fora.
Lembro-me de dois pontos luminosos atrás de mim, que eu quis que me apanhassem e se apagassem depois. E lembro-me dum espelho.
E do que ficou nele escrito sobre mim.
Eles que te contem que me viram.
E que cantei o último silêncio.
Que chorei por ti.
05.12.05
*Mó