Esta carta é para ti, mesmo sabendo que talvez nunca a vás ler. Esta carta é para mim também, que por umas horas, poucas, curtas, fui puxada a ler-te.
Vinhas de camiseta preta, eu de camiseta branca e trazias o rosto baixo, o sorriso escondido. Baixei-me, olhei-te nos olhos “Como te chamas?”, “Ana Beatriz, tia. E você?” “Eu sou a Mónica, dás-me um beijinho?”
O rosto levantou, o sorriso abriu e não fechou mais.
Abri o teu bolo, pus a palhinha no teu suco, demos as mãos. E não as soltamos até agora. Tens 8 anos, dezenas de abraços, centenas de sorrisos, milhares de sonhos. Era para eu te acompanhar, ficar junto, não te deixar fugir, não te deixar perder, cuidar de ti. Foste tu que me foste encontrando, me agarrando, me tirando o sorriso tímido que eu afinal tinha e nem sabia.
“Tia, você tá triste?” “Não Ana, porquê?” “Eu também fiquei triste, você tem cachorro? Eu tinha um, roubaram de mim e eu fiquei muito triste. Meu tio bateu na minha tia, minha mãe pegou um facão e furou o carro do meu tio. Ele roubou o meu cachorro e eu nunca mais o vi...Mas tia, vamos brincar de esconde esconde? Eu escondo e você me acha!”
Disse-te que não, e foram os únicos nãos que te disse. Que não estava triste (sei que não acreditaste) e que não te escondias para que eu te achasse... Não porque não te quisesse achar, mas porque não te iria poder perder. Não de mim, não ali.
Conversámos e fizemos o nosso papai Noel. Puxaste-me para perto do palco, abraçaste-me a cintura, deste as mãos, entrelaçamos os dedos. Pediste colo, ofereci-te as cavalitas, os ombros, ofereceria-te um voo de pássaro se o tivesse.
Agarravas-me o rosto, pulavas em mim, pulamos juntas como se fossemos extensão das asas uma da outra.
Um beijo, e outro, e abraços, e dança e risos, muitos risos. Perdia-me dentro dos teus olhos de sonho, encontrei-te dentro dos sonhos que eu também já soube ter. Aprendi em cada silêncio, cada sorriso, e em cada palavra. Vi-te perdida procurando os meus olhos e os meus esconderijos... invadiste-me!
“Tia, você fica tão mais bonita sem óculos, sabia?” Roubavas-me os óculos, roubavas-me as máscaras e eu ia contigo. Borboleta, Ana Borboleta, de asas maiores que o espaço, de viagens maiores que o tempo. Entendeste-me, raptaste-me e eu quis ir, deste-me tanto mais do que o que eu achei merecer. Disseste-me ao ouvido que eu merecia tudo, que te merecia ali, anjo criança, malandra doçura, sonho de asas e olhos negros:
“Vou sentir saudade tia, vai-me visitar, vai?”
Apertadas uma contra a outra, uma dentro dos medos da outra, a brincar de esconde esconde, ou de acha acha, a brincar de amar e sentir saudade, a brincar de perder e procurar, a brincar de nós. De “quando eu for grande”, de “quando eu era pequena”, as duas num meio tempo que nos tornou iguais. Ana Borboleta de cabelo rebelde, sardas no rosto, barriga a doer de tanto algodão doce, bochecha redonda de tanto sorriso! Esta carta que não sei se vais ler, diz tão menos do que tudo o que dissemos. E tudo o que dissemos é tão menos do que tudo o que vivemos, que aprendemos, que nunca se vai perder em nenhum jogo de esconde esconde da vida.
Porque eu, Ana Borboleta, “Te amo, do fundo do meu coração.”
Mó*
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