Costumavas dizer:
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Quando penso em ti, vejo-te com a cabeça pousada nos meus joelhos, a olhar para mim com os olhos grandes. Ás vezes tens os olhos fechados e estás a dormir, mas o que interessa é que é assim que eu penso em ti: com a cabeça pousada nos meus joelhos, quieto, enquanto passo a mão, devagar, pela escova mole dos teus cabelos.
(...)É sobretudo agora, que já aqui não estás, que gosto de imaginar-me tal qual tu então me vias
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Com a cabeça pousada nos meus joelhos, quieto, enquanto passo a mão, devagar, pela escova mole dos teus cabelos.Mas não posso já aninhar-me no teu colo e a verdade é que mesmo tu, tenho a certeza, não me recordas já assim. Só se fosses parva e preferisses enganar-te, preserverando em não querer entender quem eu sou.
(...)
O amor é para os parvos, eu sei, e a vida sem motivos é para os pobres de espírito; para os que não têm coragem, nem força, nem ânimo para morrer. (...)Pareço um mau actor de um mau filme, eu sei. Um desses com poucos diálogos e quase nenhuma acção, em que as pessoas conversam com as cadeiras e com as paredes com palavras que já ninguém usa, com frases que ninguém diz. É um bom motivo para que não voltes, eu sei(...)
Mas somos dois corpos ainda. Dois corpos a que falta uma meia parte, a tua presença, ainda que as vezes, à noite, quando o ruído da cidade cessa e não se escuta mais do que este silêncio cheio de pequenos sons, eu possa pressentir os teus passos a caminhar pela sala, espiando-me enquanto escrevo, calado, sem nada dizer.
É então que me ergo e apago a luz e vou aninhar-me no sofá que está peto da janela. Poiso a cabeça e fico
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Quieto
como um gato, sentindo a impossibilidade dos teus dedos massajando, devagar, a escova mole dos meus cabelos.(...)
Manuel Jorge Marmelo - "O Amor é Para os Parvos"